terça-feira, 27 de novembro de 2012

Língua de Sogra

A figura da sogra transita livremente no imaginário popular. Quase sempre mal vista e malquista por, ao menos, uma das partes envolvidas, ela - que também e antes de tudo é mãe - tem sua imagem vinculada a bruxas, cobras e outros tantos seres ilusórios. Nas festas infantis, aparece, comumente, em duas versões: um doce e um brinquedo. O primeiro, por mais beijinho que contenha, não figura entre os favoritos dos convivas e, geralmente, é deixado de lado. O segundo, quando assoprado, toma a forma de uma língua 'afiada', sempre pronta a cutucar, incomodar e dizimar quem quer que atravesse seu caminho. Eternas mães de frágeis criaturas, exaltam a onipresença, a onisciência e a onipotência. Tudo melhora quando ela, a sogra, vem acompanhada da outra, a cunhada. O par perfeito! Sobre esta última, diversos são, também, os ditos populares. Todos sabem e propagam aos quatro cantos de nosso redondo mundo que se cunhado fosse bom, não iniciar-se-ia desta forma. Há certo tempo, tive o prazer de provar esta iguaria preparada a quatro garras. 

Recheada da mais pura e maravilhosa tripa, amarrada e costurada como uma mandinga e banhada em um suculento molho de cor púrpura, esta língua de sogra tornou-se irresistível como as escarlates maçãs dos contos de fadas. As notícias que correm em nosso reino encantado relatam a sobrevivência de todos aqueles que tiveram a oportunidade de provar seu doce veneno.
Priscilla Sarah - aprendiz de cozinheira.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Era uma casa....

"...muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada.
Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão.

Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede.

Ninguém podia fazer pipi, porque pinico não tinha ali.
Mas era feita com muito esmero, na rua dos bobos número zero."

Essa letra fez parte de minha infância. 

Desde pequena, ao visitar meu avô e tios paternos, era hábito ouvir música tocada na vitrola. Lembro-me com uma nitidez ímpar do som emanado por aquele objeto que, na atualidade, é presença garantida em antiquários. Toquinho cantava diversas obras. Da canção O caderno, herdei um seguidor desde o primeiro rabisco - um colega que, até hoje, me ajuda a resolver diversos problemas, um confidente que me dá abrigo, nunca esquecido num canto qualquer. De Aquarela, extrai que não é tão fácil fazer um castelo mas que, com imaginação e serenidade, tudo torna-se possível. Compreendi que, com bons amigos e de bem com a vida, o futuro permanece uma astronave...
"que tentamos pilotar.
Não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar.
Sem pedir licença, muda a nossa vida, e depois convida, a rir ou chorar...
Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá.
O fim dela ninguém sabe, bem ao certo onde vai dar.
Vamos todos, numa linda passarela, de uma aquarela, que um dia enfim..."
não descolorirá.
A casa de meu avô era um habitat peculiar. De origem húngara e repleto de engenheiros, contava também com uma química. Lá, todos os 'por quês?' daquela curiosa e infinita fase da infância - que requer explicação pra tudo -, eram providos por explanações de cunho científico. Lá, o simples ato de sentar-se à mesa para tomar sopa com meu avô, era uma aula a parte. A cenoura deixou de ser a simples e saborosa cenoura - comida crua na feira mesmo - para transformar-se em uma raiz de cor alaranjada, um legume riquíssimo em betacaroteno - elemento importante para a visão, pele e mucosas. Sem contar as vitaminas: A, C, B2 e B3, o fósforo, o potássio, o cálcio e o sódio! Quanta coisa! Era só cenoura! Lá, tínhamos que fechar o pote de Ovomaltine pelo fato do mesmo ser deliquescente, ou seja, provido de deliquescência. Traduzindo: qualidade, que têm alguns corpos sólidos e minerais, de absorver umidade do ar e dissolver-se. 
Já na casa do avô materno, as aulas eram menos dinâmicas e democráticas. Comíamos o que era servido pelo simples de alguém bradar: "Porque eu estou mandando!" Ali, os por quês eram suprimidos pela forma enfática e alemã de ser. 
De uma forma ou de outra, em ambas, o aprendizado sempre se fez presente. Agradeço aos meus avós pelo carinho imenso, aos meus tios pela paciência que tornava tudo mais harmonioso, à minha mãe pelo estímulo ao convívio e ao meu pai pelo gameta masculino. O inevitável de nosso destino altera o curso da vida daqueles que aqui permanecem. Faz parte! Ao meu marido, pelos sonhos realizados, pelas conquistas, pela cumplicidade e pelo amor.
Aos meus leitores devo uma contextualização: ainda se trata de um blog de experiências gastronômicas. A razão disso tudo é o fazer com muito esmero um novo laboratório, uma nova oficina de deleites. Mãos a obra!
Priscilla Sarah - aprendiz de cozinheira.